Hoje, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Brasil, uma parcela considerável da população, cerca de 2,2 milhões de pessoas declaram ter deficiência auditiva. Este grupo representa aproximadamente 1,1% da população brasileira que necessita de profissionais devidamente qualificados para atuar nos mais variados contextos.
A ausência de regulamentação acerca da formação destes profissionais pode gerar prejuízos não só aos usuários dos serviços, mas também aos próprios profissionais que atuam diariamente em diversos contextos altamente complexos, tais como salas de aula em diferentes níveis de ensino, audiências públicas, reuniões, treinamentos técnicos, conferências, atendimentos em espaços de saúde e/ou jurídicos, dentre outros.
Além disso, é necessário levar em conta que os tradutores, intérpretes e guia-intérpretes de Libras/Português podem ser responsabilizados civil e penalmente por quaisquer condutas que porventura venham a lesar o interesse dos usuários, sejam elas cometidas por imperícia, imprudência, negligência, ou infrações éticas. A atividade de interpretação, tradução e guia-interpretação de Libras-Português exige do profissional um alto grau de competência que, caso contrário, pode efetivamente lesar os usuários do serviço, bem como, a si próprio.
Para exemplificar, podemos citar que uma informação interpretada de forma equivocada em contextos de saúde pode causar danos irreparáveis a uma pessoa surda. O intérprete precisa estar preparado para interpretar de forma correta e clara as informações passadas, por exemplo, por um médico, como a quantidade de medicamento a ser tomado, os seus horários, riscos ou danos potenciais de procedimentos etc. Caso contrário, o paciente surdo pode ser ter sua saúde lesada, podendo correr, inclusive, risco de morte.
No mesmo sentido, podemos citar a atuação de tradutores, intérpretes e guia-intérpretes em contextos jurídicos, nos quais um mal exercício profissional pode acarretar consequências gravíssimas. Para ilustrar, a oitiva de uma testemunha surda que não seja interpretada de forma correta e acurada por um profissional capacitado pode levar a um mau entendimento dos fatos e lesar uma das partes do processo.
Além disso, em contextos educacionais, milhares de crianças e adolescentes surdos e surdas em todo o país estão matriculadas em escolas ditas “inclusivas”, onde surdos e ouvintes compartilham o mesmo espaço. Nestes espaços, todas as aulas de todas as disciplinas são ministradas em Português por um professor regente, acompanhado por um intérprete de Libras. Sendo assim, o intérprete, muitas vezes, é o único profissional falante da Libras em todo o ambiente escolar – este profissional se torna o único meio de comunicação e além de um modelo para que estas crianças e jovens possam adquirir sua língua de sinais. Mas, apesar da importância deste profissional, as instituições de ensino não possuem qualquer garantia de que este profissional, sem formação específica, realmente possui proficiência e domínio da língua de sinais para realizar o serviço de interpretação simultânea – o que pode o prejudicar desenvolvimento cognitivo, bem como o desempenho escolar destas crianças para sempre.
Considerando isso, um profissional que não esteja devidamente preparado para atuar em situações como as exemplificadas acima pode causar danos graves, muitas vezes de caráter irreparável, violando até mesmo direitos fundamentais das pessoas surdas que são cidadãos brasileiros como quaisquer outros, e dispõem dos mesmos direitos e deveres.
Acreditamos ainda que a necessidade de formação superior para intérpretes, tradutores e guia-intérpretes que passarão a atuar no mercado de trabalho está de acordo com as políticas linguísticas e de acessibilidade existentes hoje na legislação brasileira. Pois já é prevista, há cerca de 20 anos, a necessidade de formação destes profissionais, como se pode observar no artigo 18 da Lei Nº 10.098/2000, reiterada pela redação da Lei Nº 13146/2015, no artigo 28, inciso XI da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que incumbe ao poder público a “formação e disponibilização de […] tradutores e intérpretes da Libras, de guias intérpretes” – uma demanda que vem, até agora, sendo ignorada por diversos governos.
Ainda na Lei Nº 13146/2015, em seu artigo 3º, inciso IV, alínea d, o termo “barreira” é definido como: “qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros”.
O documento Direitos Humanos das Pessoas Surdas: pela equidade social cultural e linguística, constituído por um grupo de trabalho de lideranças surdas de todo o país, atenua pontos fundamentais já postos pela Federação Mundial dos Surdos (World Federation for the Deaf — WFD), que tem como sua principal prioridade, a garantia dos direitos humanos aos surdos, considerando os seguintes aspectos: (1) o respeito e aceitação da língua de sinais; (2) a efetivação da educação bilíngue; (3) o Direito Linguístico em Língua de Sinais informação que circula socialmente; e (4) a interpretação de/para língua de sinais. As propostas de intervenção do documento explanam sobre condições básicas para efetivação desses direitos, organizando uma série de demandas de diferentes áreas: no âmbito acadêmico, no âmbito escolar, no âmbito social e no âmbito governamental. Estas propostas refletem uma análise do que está previsto na legislação, no que foi ou não implementado e no que precisa ser ajustado e/ou efetivamente implementado.
Nesse sentido, entendemos que profissionais intérpretes, tradutores e guia-intérpretes que não sejam devidamente qualificados ou formados, ao invés de quebrar barreiras, podem causá-las às comunidades surda e surdocega, não promovendo um efetivo acesso aos mais diversos âmbitos da sociedade e privando o pleno exercício de todos seus direitos – sendo que estas iniciativas devem ser garantidas pelo Estado, e não depender da oferta circunstancial da possibilidade da prestação de serviços voluntários.
Salientamos que de acordo com o Decreto nº 9.906, de 9 de julho de 2019, que Institui o Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado “Pátria Voluntária”, em seu Art. 20, determina que o serviço voluntário tem como fundamento o princípio da complementaridade que “pressupõe que a atividade voluntária não substitui o papel do Estado e que órgãos e entidades da administração pública e entidades privadas responsáveis por atividades voluntárias não poderão engajar voluntários em substituição a empregos e cargos formais ou como meio de evitar obrigações para com seus empregados e servidores”. No entanto, temos observado várias tentativas de precarização do trabalho do tradutor, intérprete e guia-intérpretes de Libras, principalmente através da proposição de “oportunidades” de trabalho voluntário em instituições e eventos públicos.
Como, em julho/2019, quando o Tribunal Regional do Trabalho – TRT 11ª Região (Amazonas e Roraima) emitiu uma matéria que trata do cadastramento de tradutores-intérpretes voluntários da Libras, para compor “um banco de dados que permanecerá à disposição dos magistrados com o propósito de subsidiá-los na designação dos referidos voluntários sempre que houver necessidade para o andamento processual, atuando, por exemplo, em audiências nas quais participem pessoas com deficiência auditiva.”
Entre os meses de Setembro e Outubro de 2019, no Distrito Federal, houve solicitações de TILS voluntários para eventos promovidos pelo poder público: sendo o primeiro pela Secretaria de Justiça e Cidadania, cujo título era Voluntários – Intérpretes de Libras, para atuar de forma voluntária em ações e eventos pautados na temática de Direitos Humanos, inclusive com um quantitativo de 20 vagas, a ser realizado de 19 de setembro a 31 de dezembro, e; o segundo, pelo Programa de Voluntariado da Secretaria de Justiça do Distrito Federal, para o “I Fórum de Governança e Compliance do DF”, a ser realizado entre os dias 21 e 22 de outubro de 2019. Nestes eventos, foram orçados e remunerados outros serviços como recepção, iluminação, etc. mas não o serviço de interpretação de/para Libras.
Ou, em Novembro de 2019, quando o Campus Colatina do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, homologou a previsão de serviço voluntário de Tradução e Interpretação de Libras com carga horária de 40h (quarenta horas) junto ao Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades Específicas (Napne).
Para além disso, no dia 02 de Dezembro de 2019 começou a circular nas redes sociais peças publicitárias relacionadas ao programa “Pátria Voluntária” do Governo Federal. Umas das personagens da campanha seria uma Intérprete de Libras que supostamente estaria realizando uma atividade voluntária com o ensino de Libras. Diante do atual status da profissão, uma campanha como essa contribui para manter uma visão de que a interpretação deve ser realizada apenas por voluntários, ou que atividade de docência de Libras seria também uma atividade realizada por intérpretes, ou ainda, que qualquer pessoa, em caráter voluntário, estaria apto a interpretar, traduzir, ou ensinar a Libras, mesmo sem a qualificação adequada para o desempenho dessas atividades.
Há muito tempo, a comunidade surda tem atuado politicamente para fazer com que seus direitos linguísticos sejam garantidos, juntamente aos profissionais tradutores, intérpretes e guia-intérpretes, que têm lutado para fazer com que a visão caritativa seja desconstruída relacionada a profissão, pois historicamente, o espaço para o voluntariado existe em instituições sociais e em prol da comunidade surda.
Porém, situações de atividades de tradução e interpretação formal (dos quais destacamos os contextos educacionais, jurídicos, e de saúde) devem ser realizadas por profissionais qualificados e devidamente remunerados. A atividade de voluntário não exige o mesmo comprometimento do que um contrato formal de atuação. Existem instituições sem intérpretes de Libras, pessoas surdas sem a presença de profissionais. É preciso garantir acesso dos surdos aos diversos espaços sociais através de políticas que envolvam a tradução e interpretação de forma permanente, independentemente da sazonalidade do voluntariado.
Portanto, as instituições que assinam esse documento, entidades representativas do coletivo dos intérpretes, tradutores e guia-intérpretes e comunidade surda, solicita que sejam tomadas as medidas necessárias para que o Direitos Linguísticos e de Acessibilidade da Comunidade Surda e Surdocega sejam garantidos, e que os tradutores, intérpretes, e guia-intérpretes de Libras tenham finalmente sua atuação e remuneração reconhecida e valorizada, principalmente em ações promovidas pelas diversas instâncias do governo: federal, estadual e municipal, a fim de atender à legislação que trata da Acessibilidade e dos Direitos das pessoas com deficiência no Brasil – como a Lei 10.098, em vigor desde o ano 2000 (prestes a completar 20 anos desde sua publicação).
Reiteramos a necessidade de que caminhemos em direção à uma sociedade inclusiva, equitativa e promotora da cidadania e da dignidade humana. Agradecemos a atenção e mais uma vez nos colocamos à disposição para dialogar sobre quaisquer outras questões envolvendo esta temática.
Brasília, 05 de dezembro de 2019.
Assinam este documento:
Fernando de C. Parente Jr. – Presidente da Febrapils:
Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes e Guia-Intérpretes de Língua de Sinais
Francisco Eduardo C. da Rocha – Presidente da Feneis
Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos
Ricardo Souza – Presidente da Abrates
Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes
Link para documento em pdf: http://bit.ly/NotaRepFebraFeneisAbrates
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